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A FÁBRICA

[A VIDA EXTREMA: INTRÓITO]

Serei explícito. Sei que as pessoas que me conhecem não irão acreditar no que vou dizer, mas eu sou nómada e a minha vida é extrema. Não nasci nómada, mas sou nómada e morrerei nómada. O meu percurso é lento, mas eu sou nómada. O meu ventre é imenso, mas eu sou nómada. As minhas viagens, escassas. Mas eu sou nómada. E a minha vida, extrema. É por isso que, como escreveu Nietzsche, eu não sou um homem, sou dinamite. Pois é minha a capacidade da implosão. Minha, a potência criadora. Atrás da minha face de burguês indolente, explode o apetite de destruição. Eu sou da estirpe dos assassinos. Dos que querem a guerra. A morfina corre polas minhas veias. Sou quem cruza o deserto e derruba os templos. Se existisse uma pessoa que soubesse compreender as minhas mãos, veria nelas os dedos compridos da peste libertadora. A mão negra que é pulsão irreprimível de vida. Atrás da minha face de morto, assoma a visão espantosa do útero de deus. Porque, como tenho escrito, eu sou a mão que dá a vida a deus. E quem lha rouba. Foi Baal quem edificou a minha biblioteca. O Velho da Montanha mostrou-me os seus intestinos e neles vi o meu caminho. Sei que destruirei cidades, sei que levantarei ídolos. Sei que caçarei nas florestas do Norte. Sei como são os vermes que irão crescer no meu ventre. Sei quais são as palavras. Sei por que ainda me obstino em persistir no sacrifício. Sei muito bem qual a função dos sapos, qual, como mostrarei, a forma do inferno. Sei, enfim, por que destruo o meu corpo, por que limito os espaços do poema. A minha é a experiência de uma vida extrema, a exploração sistemática do vazio que me envolve. O conhecimento cirúrgico da dor que nos funda. Isso que tem como nome doença. A vida extrema é o conhecimento exacto, a descrição minuciosa do que é a morte. Caminhar polo centro da rua com roupas burguesas e alma de caçador. A imaculada lentidão dos meus passos até ao centro da praça onde, como escreveu Octavio Paz, a minha cabeça é uma fonte. E isso mana com força. Flui brutal polas ruas e as praças. Inunda a cidade. Devora os espaços. Cria a revolução e extermina os revolucionários. E os corpos explodem como sapos. E os sapos ocupam o lugar dos homens. E Baal ri enquanto queima a minha biblioteca. Nos intestinos do Velho da Montanha eu vi a minha origem. E eu, em silêncio na minha cadeira de pedra, estático e indolente, nómada, ofereço estes versos poderosos de vida, estes versos sociais que falam do inferno, que é a cidade, que é o fedor imundo do capital, que é uma casa, que é a geometria de um corpo quebrado, dos poros estilhaçados, que é a memória. E por isso ofereço hoje estes versos como demonstração incontestável da experiência de viver uma vida extrema. Cruzando o deserto, eternamente. Cruzando o inferno, que é um jardim, que é um gesto autoritário, que é o esquecimento, que é a poesia.

1 comentario

Pedro Casteleiro -

Sôbolos rios que vão / por Babilónia, m'achei... Para além de um inconsciente canto em terra alheia, este texto teu, querido amigo, também me lembra o discurso do Smith, em Matrix, lembras? quando exprime o profundo afogo e insatisfação do mundo que vive, e também o nojo ante a perspectiva de todas as possibilidades de mundo que, na sua condição, lhe esperam -sem saída. Smith é sincero, ou morre ou não tem saída. É claro que não falo agora da morte física, quando Camões escreve esse texto fala do abandono, do despojamento, da condição que faz a única riqueza dos nómadas, no caso dele, dos navegadores. Do abandono, do despojamento de quê, dos bens de qualquer índole? da obediência política, científica, etc.? De que estão despojados os que não estão atados ao útero e dormidos? (Há quem não está!?) Gostaria de fazer algo mais do que perguntas mas por enquanto não podo transmitir mais do que incertidões.