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A FÁBRICA

Pedro Casteleiro

A Pátria

Com tristeza e alegria, chego tarde à celebração na cidade herculina do Dia da Raça, com o alçamento nacional da bandeira. Aderindo e ultrapassando o júbilo institucional, quero cá contribuir com o meu pequeno mas –acho- significativo grão de areia à reconstrução do nosso autêntico sentimento patriótico peninsular. Não tenho palavras: por favor, leiam isto aqui.

As minhas mãos anos depois

Este repto, o de escrever um poema a começar com um verso proposto, foi lançado há anos, e respondido corajosamente, por todos os poetas que trabalham na fábrica e, há uns dias, relançado ao grande amigo e poeta Ramiro Torres e ao Xavier Vásquez Freire, em cujo blog me deparo com a linha "O tempo não existe". Este é o meu novo As minhas mãos têm a idade do universo, anos depois.


As minhas mãos têm a idade do universo,
e guardam o trigo entre os caminhos velhos
e entre os caminhos novos. Separam o tempo
de cima do que está em baixo, brilham a sós
como as estrelas em março na tua boca.

Nada direi, que elas vos escrevam, inimigos
íntimos, habitantes do dia que não está no calendário,
sobre a esteira quente do vosso nome, calo.

E vós falai, prisioneiras de nada, perfumai com ópio os velhos
locais da palavra, enlouquecei.
Mãos,

habitantes dos meus rios,
elegíacas e loucas,
tenebrosas extractoras
mineiras dos meses.

Palestra na Corunha do Prof. Monterroso

A próxima quarta-feira, dia 21 de Setembro, polas 20:30 h., no local A Tréu (Rua São José, A Corunha), o Prof. José Maria Monterroso falará sobre "Apelidos galegos: esses desconhecidos". Como suponho sabereis muitos, Monterroso é escritor em espanhol e galego, foi durante muitos anos presidente da Ass. Cultural O Facho, e nos últimos tempos se tem especializado em onomástica galega. Na minha opinião trata-se de uma pessoa, para além de boa gente, muito interessante e as suas comunicações resultarom-me sempre magistrais e amenas.

Abraços.

Adeus alegria, adeus tristeza

Meu coração tornou-se capaz
de assumir qualquer forma;
ele é um pasto para gazelas e um convento para monges cristãos,
um templo para ídolos e a Caaba dos peregrinos
as tábuas da Torah e o livro do Corão.
Eu sigo a religião do Amor:
qualquer que seja o caminho que o Amor toma,
esta é minha religião e minha fé.

Ibn 'Arabi, em dedicatória a Meulana Jelaleddin Rumi.

Canção da noite de São João

Da minha procura em forma de livro, resgato um novo texto da diáspora, conhecido como "O casamento do enfeitiçado" ou "Canção da noite de São João".

Vêm aqui escuitar a música
os hinos fortes e tristes
que iluminam o temor
e as noites do espírito.

Vêm ouvir as melodias que
encantam os dedos, como cigarros
e fumo, envoltos numa
transitória, delicada dança.

Ouvir histórias que alimentem
armários vazios, rapsódias
para a felicidade das tumbas.

Porque esse é o destino da pele,
converter-se no palácio dos vermes
em breve.

Ao mesmo tempo, este, nosso momento,
de sombra e música, é único,
porque podemos
aprendemos como voar e cantar
e crescer altos e definitivos sobre o lume.

Vimos aqui bailar e aprender
uma nova voz cantada
que não ensina nada
que não dura
que morre e em cada gesto
permanece, sístole e
diástole do amor, metáfora
do entendimento.

Vimos aqui cantar a nossa morte
Cantar, após a morte, a nossa vida.

O pássaro solitário e a debandada ibérica (e II)

"Assim, na visão de Goytisolo, o século XVI assistiu à ruptura de uma tradição de diálogo intercultural. Um diálogo que havia dado à Espanha lugar privilegiado no panorama europeu. Basta pensar na escola medieval de tradutores de Toledo. Lá colaboraram estudiosos árabes, judeus e cristãos, graças ao impulso do rei Afonso, o Sábio. Mas a expulsão de fins do século XV e a censura político-religiosa do século XVI arruinaram esse diálogo. E contribuir para reatá-lo tem sido o intuito primordial de Juan Goytisolo.
(…) Há, portanto, um San Juan de la Cruz silenciado, e testemunha de vozes silenciadas. É este San Juan que Goytisolo vem resgatar. E, concretamente, o autor de um texto perdido, Propiedades del Pájaro Solitario. Não chegou até nós esse escrito sanjuanista. Desapareceu talvez depois da morte de Teresa, no tempo das perseguições. Sabemos que alguns amigos que conservavam escritos de San Juan de la Cruz tiveram de queimá-los para proteger o poeta. Uma testemunha nos fala da perda de um opúsculo, um tratadillo, como dizia. Seu título era precisamente Propiedades del pájaro solitario."

O resto deste texto, que para quem achou interessante o extractado há-de resultar bem mais interessante podereis encontrá-lo premindo aqui. Um abraço.

O pássaro solitário e a debandada ibérica (I)

Em referência ao comentário de Alfredo sobre a reorientação, ainda que também à pergunta de Táti sobre o que é que nos une, e respondendo até uma velha questão sobre o que deu origem ao nascimento daquilo que fomos. Extractos deste curioso texto de Mª de la Concepción Piñero, Universidade de São Paulo: Metamorfoses Literárias de um Pájaro Solitario.

"Estas reflexões partem do tema da tradição literária e de sua ruptura. Mais precisamente, do caso de uma obra literária que tem a ruptura como ponto de partida. Trata-se de um romance espanhol de nossos dias que quer preencher uma dupla interrupção: reatar uma tradição de diálogo cultural, rompida desde o século XVI, e devolver um texto destruído que se havia inspirado nesse diálogo. Assim, o foco desta exposição será o processo mesmo de devolução da obra perdida.
É inusitada a proposta deste romance. Pretende devolver à Literatura Espanhola um texto destruído no século XVI. Mais ainda: pretende reatar o diálogo do texto destruído com as culturas árabe e judaica, que o inspiraram. Por isso tudo, este romance permite uma reflexão sobre alguns aspectos da cultura da Idade Média e do Renascimento. E permite fazer essa reflexão a partir de um dos maiores escritores de nossos dias. Falo do romancista catalão Juan Goytisolo.
(…) Ainda em 1969, o então jovem escritor, que não havia chegado aos quarenta anos, publicava um importante ensaio, España y los españoles. Suas páginas falavam da urgência de preencher as lacunas abertas na cultura espanhola pela perda de energias fundamentais de sua vida intelectual. E apontava para as culturas orientais, que até o final da Idade Média haviam estado presentes na Península Ibérica. E que haviam fecundado algumas das obras-primas da Literatura Espanhola.
De fato, é na herança judaica, como experiência de exílio, que Goytisolo vai buscar o sentido de solidão e de inquietação da narrativa de Cervantes ou da lírica de Luis de León. E é na afetividade da lírica dos místicos muçulmanos, os sufistas, que o escritor encontra a chave de algumas obras-primas intensamente sensuais. Mas já nas primeiras décadas do século XVI a censura suprimia tais manifestações. Tanto que algumas dessas obras tiveram de ser publicadas fora da Espanha, como La Lozana Andaluza."

Sefer Sefarad (as canções da diáspora)

II. Canção


Dançar com os intérpretes
da melodia do mundo,
os que dão à luz um universo de encontros
e inauguram, intactos,
um Sol novo
e uma Lua nova,
dançarinos nas sombras.

Um barco de algazarras atravessa o perfil
e inicia a luz de um dia
a luz, a que plantou
as velhas oliveiras,
calcanhares surdos
da nossa promessa.

O meu lugar é aqui,
em toda a parte,
onde cantar,
e devotar-me a um exercício milagroso
de encantamento e penumbra.

Quem me dera voar na vertigem
das selvas da nossa própria carne
e vestir-me de negro e esmeraldas
arrumando a velocidade do corpo
para um universo novo de rum e especiarias

invisível através de ti.

Poema

A Isabel.

Caminho já longe
Da casa queimada por mim:
Só salvei dela um mapa em branco
Com indicações muito precisas
Para desenvolver-me polas cidades
Que se alçam ao fundo deste espelho dormido
Em que estás a ler agora.

Deixo cair
As minhas propriedades na rua,
Expostas à inquietação dos transeuntes:
Eles não compreendem a deriva dos meus passos,
Persistem em construir casas onde sentir
A lenta dissipação das suas vidas como um prémio.

Eu, porém,
Matei todas as raízes escuras
Que assombravam a minha morte:
Conheço a alta árvore do amor, o seu
Fruto certo em que ardo e pervago livre;
E assim permaneço nesta transformação
Do meu corpo em aprendiz do nada mais pleno.

Mutatis mutandis

Relembrava com o Alfredo a ocasião em que o meu professor de Direito Político, Ramón Máiz, autor de uma interessante tese sobre a política e a cultura dos últimos 150 anos na Galiza, dizia que o galeguismo é um movimento que se caracteriza polo fracasso e a descontinuidade. Mais interessado polo significado da observação do que pola identificação com aquele movimento, eu saudei com alegria esta proposta de Táti de construir uma ágora onde a gente, nomeadamente a vinculada ao que primeiramente se chamou A Fábrica, logo Hedral e finalmente Companhia Poética da Meia-Noite, onde a gente -dizia- se encontrasse e reconhecesse.

Passou tempo, estes últimos anos, e os nossos condicionantes e estilos nos pintarom caras diferentes, línguas diferentes, ritos e emoções a leste e oeste. Por isso pido licença para perguntar ao Mário, a raiz da conversa com Ramiro, sobre o território do cavalo alado do Alfredo, por que é que acha que digo cousas estranhas. Devo adiantar que sinto que esta frase implica que o Mário escuita com consideração (isso e muita virtude mais não me surpreendem nele) e que, alternativamente:

A) Digo cousas que não fazem sentido em absoluto (e ficaria a saber).
B) Digo cousas que não parecem fazer sentido relativamente ao nosso condicionamento (e então sei, mas não me apercebia de estar a resultar tão confuso, sinceramente).

Mas como dixerom outros antes do meu professor, a gente muda e viaja e é bom manter o contacto. Então, se a hipótese ajeitada for a B) talvez podamos falar e viajar, querido Mário, sobre essa confusão de que me falas, sobre a incertidão do território fundacional do poético de que fala Ramiro, de que canta Alfredo.

Um abraço.

A verdade não está num sonho mas em muitos

“ A fidelidade é uma virtude mas a inconstância também o é “ (As Mil e Uma Noites)

Porque qualquer comprometimento deve ser submetido à peneira do coração, sob pena de obstaculizar a nossa verdadeira fidelidade com a procura mais íntima. Estou estes dias a traduzir o Jalaluddin Rumi e encontrei este comentário “ vimos fazer uma só cousa, se a figermos e deixarmos sem fazer o resto, não tem muita importância; mas se figermos todas as cousas e deixarmos essa sem fazer é como se não tivéssemos feito nada”. Creio que nós somos e fomos de alguma maneira uma escola, e as escolas não permanecem inalteráveis, mudam em virtude das circunstâncias, algumas desaparecem. Nada mais do que uma escola, naturalmente de umas características diferentes ao que é habitual, em que não há magistério visível, apenas estudantes. Ou buscadores de pérolas, embora sejam já praticantes avançados. Valorizo muito as intervenções e o nível do Mário, o Ramiro e o Alfredo e compreendo a Táti, na sua expressa necessidade e vontade de mais ar, de mais mar. Na esteira da liberdade e o amor, o caminho dela ela mesma há-de acertar, mas é afinal precisa uma errância própria, e errância significa caminhar e aprender, como me dizia há anos o Chíqui. Mas não é, creio, o momento nem do travão nem da esgrima, está aqui a Táti a falar de algo muito importante, que não é a ortografia mas a adequação não traumática e fértil ao que nos cabe viver, sendo ao mesmo tempo, na medida da arte e o espírito de cada um, transmissores de tudo aquilo que de positivo nos foi entregue, em palavras de Saramago, da melhor maneira que soubermos. A melhor maneira de escrevermos é sempre na norma internacional da língua galega? Apenas é esse o ousado estatement de Táti. E dos sábios imprudentes é o ouro, parafraseando a Camões. Bem, em todo o caso, acedamos, na medida em que pudermos, ao Camões e ao melhor das nossa tradição literária clássica e moderna, e procuremos, se assim o requererem, que os nossos filhos recebam também a sua parte neste vinho excelente.

Um abraço.